sábado, 15 de dezembro de 2012

É tarde demais


Eu, Christiane F.,13 anos,drogada e prostituída foi um livro que eu adquiri em 2003. Só sei disso porque eu anotei na primeira página um "Eu, Silvia Pupo, 17 anos (e o restante eu tinha apagado, mas com certeza era algum trocadilho fuleiro). Ele fez parte de um trabalho multidisciplinar, fazendo parte da grade as matérias de língua portuguesa e sociologia. Eu me lembro de ficar com muito orgulho da minha nota na parte relacionada à sociologia: NOVE. O professor Vitor passou uma prova com cinco questões, cada uma valendo dois pontos. Todos os alunos receberam um folha resposta mas eu precisei de mais uma, devido ao tamanho das minhas respostas. No fim precisei de duas folhas que foram devidamente preenchidas frente e verso ( e vale ressaltar que minha letra era miudinha). Contudo, eu respondera apenas quatro questões; justamente a primeira, que pedia para situar o momento histórico da trama e relacioná-lo com a situação dos jovens drogados de Berlim, não respondi. Confesso que não tinha me atentado a isso e depois de reler o livro bateu uma baita vergonha porque estava ali escancarado para quem pudesse ler. Bom, eu nem tentei encher linguiça e entreguei a prova sem responder essa questão. E eu fui tão bem no meu raciocínio que acabei levando um ponto extra, então no lugar de oito, acabei recebendo um nove. Comemorei como se tivesse tirado um dez.

Eu nunca tinha ouvido falar na história desse rapariga. Na primeira vez em que li eu fiquei com aquela sensação de querer saber logo o desfecho, mas ao mesmo tempo ficava triste por terminar a leitura. Estou dando uma olhada nele agora...Ele faz parte da 41ª edição, publicado pela editora Bertrand Brasil. Eu costumo chamá-lo de "o livro rubro negro", por estampar a foto da Chris F (intimidade adquirida) numa cor vermelha, com o fundo preto. As laterais estão amareladas dando um aspecto velho (bom, já faz nove anos em que o mantinha guardado no armário). É hora de eu pegar um metrô para Berlim, meados dos anos 70 e descer na estação Zoo. 

Sobre o livro


Antes de mais nada, nesta parte pode acontecer de eu soltar alguns spoilers, mas não são propositais. É meio impossível comentar sobre o livro sem que algo seja revelado. Mas fiquem tranquilos que não reproduzirei trecho por trecho da obra. 

O livro é o depoimento de Chris F. dado a Kai Hermann e Horst Riech. O que era pra ser duas horas de entrevista acabou tornando-se dois meses. Como a história é narrada em primeira pessoa (há alguns capítulos destinados a depoimentos da mãe e de especialistas), fica mais fácil sentir se próximo da Chris F. Até os 6 anos a menina morava na fazenda e sua vida começou a se desestruturar logo que chegaram em Berlim. Ela conta a expectativa de morar em um grande apartamento, enquanto seus pais abriam o próprio negócio, uma agência de matrimônios. Porém eles não foram bem sucedidos e se mudaram para um apartamento menor, no Conjunto Gropious. Pelo que entendi, era quase um cortiço vertical. E embora a família dela não gozasse de uma boa situação financeira, os pais dela tratavam com certo ar de inferioridade os operários que também viviam no conjunto. Richard, o pai da garota, era presunçoso e violento. O avô dele tinha muito dinheiro e era proprietário de uma gráfica e de um jornal mas após a guerra ele foi expropriado pela RDA (aaaaah aí estava o período histórico, Alemanha dividida em duas, como eu não lembrei isso na hora da prova???!!!). Assim a família dele jogou em seus ombros toda a responsabilidade de recuperar o legado do avô, ou pelo menos, voltar a ter a vida confortável de outrora. Ele se tornou um verdadeiro frustrado, violento e bêbado. Ele não se conformava em ter uma vida que "não correspondia ao seu nível'. Deste modo, ele coloca a culpa na família pelo seu fracasso. Richard chegou ao ponto de mentir sobre sua vida para os amigos, nunca apresentando Chris F. e sua irmã como filhas, mas como sobrinhas. A mãe de Chris F. era uma mulher dividida entre as funções de progenitora, esposa e trabalhadora. Ela mesmo reconhece que não tinha muito tempo para as filhas e tentava compensar sua ausência com pequenos mimos. Em comum com o marido, ela não tomou as rédeas de sua vida perante a família. A única maneira que ela viu para ser "livre' foi engravidando do então namorado. Ela também era alvo dos sopapos do marido. Com um histórico familiar assim, a Chris F já se torna uma pessoa digna de pena. Mas, isso pra mim não é o motivo principal para entrar nas drogas. O Conjunto Gropius era uma verdadeia prisão. Tudo o que ela tinha na vida na fazenda (brincadeiras ao ar livre, contato com outras crianças, etc) não faziam mais parte de sua nova rotina em Berlim. Hoje diríamos que ela sofreu bullying. Um local planejado para ser modelo de moradia, o Conjunto Gropius não possuía nenhuma área de recreação infantil, havia diversas placas de "proibido". Qualquer diversão que as crianças encontrassem era imediatamente proibida no dia seguinte (será que foi aí que a JK Rowling se inspirou para criar a Dolores Umbridge?). Segundo ela, parecia que as crianças não tinham o direito de imaginar, de criar. O Gropius era um local que afirmava prezar pela segurança e bem estar dos seus moradores, mas não dava a mínima voz para seus moradores, afim de saber se eles estavam satisfeitos com aquilo. 

Chris F passou a frequentar o Centro de Jovens que havia no conjunto; o que passava despercebido pelos moradores era o fato de centro concentrar uma quantidade alta de jovens usuários de droga. Foi lá que Chris F. e sua amiga Kessi fumaram haxixe pela primeira vez. Foi neste local que ela fez sua primeira turma e se sentiu tão feliz por isso. Ela sentia-se especial por considerar parte de um grupo de "pessoas incríveis e superiores aos demais". Fumando haxixe, ela se tornou um deles. Um carinho e amor nunca sentido no ambiente familiar. É nessa parte que eu já começo a puxar o freio e lembro que a história apresenta a visão da protagonista. Será que essa não era uma felicidade idealizada por ela, será mesmo que a turma era aquilo tudo?

Logo somos apresentados ao Sound, a discoteca mais moderna da Europa. Ela sente aquela excitação comum nos adolescentes de conhecer novas pessoas, novos lugares. E sempre ela descreve um amigo novo como uma pessoa incrível e superior aos antigos amigos. O que fica claro é essa síndrome de inferioridade da Chris F. Ela sentia a necessidade de se sentir aceita por todos aquelas que ela julgava "os maiorais, os mais descolados". E mesmo, apesar das brigas e desavenças, ela acreditava que o amor e respeito os unia. Não percebeu (ou isso pode ter ocorrido tempos depois) que era a droga que os unia. Foi no Sound que ela conheceu seu primeiro namorado, Atze e passou a viver em função dele, chegado a mudar seu visual para agradá-lo. No meio disso tudo, ela já tomava Efedrina, Valium e Mandrix. Ela nos conta o seu fora e posteriormente como engata o namoro com outro frequentador do Sound, Detlef. Ao longo do seu depoimento, ela descreve seu relacionamento com Detlef como algo "único, terno e sincero". Novamente eu penso que ela maquiou a realidade. Mas percebi que não precisa ser uma viciada para distorcer sua realidade. Quem aqui nunca viveu de aparências, escondendo o jogo sobre seus problemas de relacionamento. Claro que em se tratando de Chris F e Detlef, a escala era muito maior. Ele começou a se picar primeiro que ela. Pensando que perderia seu amor, a menina foi na onda da heroína, achando que poderia parar no momento em que decidisse. 

Na primeira vez em que li, achei aquilo chocante. Antes nunca tinha lido nada com tantos detalhes e tanta franqueza também. Até mesmo as biografias dos meus ídolos musicais traziam passagens tão brutas quanto a da Chris F. O choque talvez foi maior por se tratar da vida de uma garota que mal tinha completado 14 anos. Eu tinha 17 quando li a história e me senti extremamente feliz em nunca ter pensando em experimentar algo do tipo. A partir do namoro com Detlef, começa a queda vertiginosa de Chris F nas drogas, passando por situações degradantes, como a prostituição. Engraçado que ao ler os relatos, ficava cada vez mais em dúvida sobre o amor de Detlef por ela. 

Relendo o livro, eu dei mais atenção como o governo levava essa situação. Não que a nossa protagonista nunca tenha tentado parar com o vício; mas as instituições não pareciam preparadas para aquela contigente de jovens (verdadeiras crianças) cada vez mais debilitadas pelo uso de drogas como a heroína. Havia também muitas clínicas que visavam mais o lucro do que a reabilitação dos pacientes. 

Uma Alemanha dividia ao meio, o número de jovens frustrados quanto ao seu futuro, escolas estimulando a competição entre seus alunos, Chris F e sua turma de viciados sonhando com uma vida burguesa (embora demonstrassem desprezo por eles, os burgueses), um número crescente de jovens se prostituindo, outros tantos morrendo por overdose. Esse é o cenário apresentado no livro. Eu não conheço uma pessoa que não tenha um caso de parente envolvido com drogas. Eu mesma tenho um primo que é viciado. Pior cena do mundo ele aparecer totalmente alterado na festa de casamento do irmão. E a família ainda tenta esconder o sol com a peneira. Mas o problema é que não se pode ir internando a força, deve partir dele a vontade. Aí que mora o problema. Eu, com meus 26 anos, ainda não consigo ter uma opinião formado sobre a questão da droga, se vejo apenas como uma questão de saúde pública ou se opino na questão jurídica. Será mesmo que a descriminalização das drogas diminuiria a violência? Mas isso não diminuiria as complicações do abuso do uso de drogas. Se nossos hospitais não conseguem atender pacientes com uma simples dor de cabeça...E qual seria a graça de eu estar ao lado de pessoas que estariam com o estado alterado por uso de drogas? Ok, já ouvi como resposta que há alimentos que também alteram a percepção das pessoas e que nem por isso estão restringindo a venda de alimentos (e ainda me deram como exemplo o chocolate). Talvez eu esteja fraca com argumentos. Talvez eu seja um reacionária enrustida. Ou eu não consiga hoje ver viciados como vítimas ou pobres coitados. É difícil entender o motivo que leva tanta gente a querer experimentar uma droga. Porque baixa auto-estima, problemas familiares, financeiros e amorosos todo mundo tem. Já me frustrei muito nessa vida e nem por isso recorri a drogas (até mesmo medicamentos). Eu nunca passei por uma situação em que precisava ser aceita e, para tal aceitação, tivesse que fazer algo que ia contra os meus princípios. Embora meus ídolos do rock fossem em sua grande maioria de drogados e muitas de suas composições foram criadas sob o efeito das drogas, eu não me deixei influenciar. Será que tudo isso se resume a ter personalidade? Não, é muito simplório. No meu caso, eu suponho que amo demais o meu corpo para destruí-lo, e não quero apagar da minha memória os meus momentos, sejam eles tristes ou alegres. 

Soundtrack: 

Nos anos 80, o livro foi parar nas salas de cinema. Mas já adianto que é muito, mas bota muito, ruim! Como comentou meu colega André Rosa, "é um filme que não tem o começo". O professor Vitor passou em uma aula, antes da aplicação da prova. Vale muito pela trilha sonora, que ficou na mãos do David Bowie, não por acaso um dos cantores favoritos da Chris F. Segue abaixo duas cenas do filme:

Station to Station (e eu adorei o fato dele ter participado do filme)

Heroes - esse clássico está também na trilha de As vantagens de ser invisível

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